quinta-feira, 7 de maio de 2009

Memória do Futebol Cearense - Ferroviário, a fundação.



O FERROVIÁRIO ATLÉTICO CLUBE nasceu pela ação de empregados da Rede de Viação Cearense (RVC, depois Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima, RFFSA, atual Companhia Ferroviária do Nordeste, CFN).
Em 1930, a RVC instalou oficinas de manutenção de locomotivas, carros e vagões na então distante região do Urubu, precisamente onde hoje se encontra a sede da CFN, na Avenida Francisco Sá - tal logradouro corresponde à antiga Estrada do Urubu, no período importante via de comunicação com a então distante.Barra do Ceará, onde havia um hidroporto À época, Fortaleza restringia-se praticamente ao seu centro histórico. Naquela área ao longo dos anos concentrou-se toda uma população humilde, na maioria fugida da seca, fomes e latifundios do sertão. Não foi coincidência que no intuito de servir-se da mão-de-obra barata representada por essa população carente, instalaram-se na zona oeste da capital várias indústrias.
Com uma grande quantidade de tarefas e serviços para executar, em 1933 a direção da RVC determinou a realização de horas extras noturnas (das 18 às 20h) nas citadas oficinas do Urubu, visando assim recuperar mais locomotivas, carros e vagões. Encerrando-se o expediente normal às 16h25min, decidiram os operários mais jovens, sobretudo aqueles que moravam longe, aproveitarem o "intervalo forçado" para divertirem-se, passarem o tempo, jogarem foot-ball. Cotizaram o dinheiro para a compra de uma bola e armados de pás e enxadas, limparam um terreno vazio dentro das oficinas, tirando matos, arrancando tocos, nivelando-o. Para completar a construção do campo, confeccionaram traves a partir de tubos retirados de caldeiras de velhas locomotivas.
Daí em diante, no finalzinho da tarde, tornou-se sagrado o "racha" entre os operários nas oficinas do Urubu. Para maior deleite, improvisaram até dois times, "Matapastos" e "Jurubeba", nomes de ervas, uma "homenagem" irônica dos proletários aos matos que havia no terreno e que deram tanto trabalho na preparação do campo.
Com o sucesso das peladas veio a feliz idéia de organizar "algo maior”. Em reunião na casa do mecânico José Roque (o “gordo”) os boleiros da RVC decidiram unir Matapastos e Jurubeba parta formar um time de fato capaz de jogar pela periferia nos finais de semana e até participar de campeonatos suburbanos. Dentro do óbvio, a equipe recebeu o nome de FERROVIÁRIO – apenas FERROVIÁRIO -, por pouco não sendo chamado também de “ferrocarril”, a exemplo de outros clubes sul-americanos oriundos de companhias férreas. Escolheu-se ainda um uniforme com listas verticais cores vermelho, preto e branco, provavelmente inspiradas no Clube Atlhético Paulistano (antecessor do atual São Paulo Futebol Clube, fundado em 1935).
As "movimentações esportivas operárias" não passaram despercebidas a Valdemar Cabral Caracas, então influente chefe do escritório de manutenção da RVC e igualmente apaixonado por futebol. Este nascera no ano de 1907, em Pacoti-CE, e constituiu-se das mais destacadas personalidade da história desportiva cearense, fosse fundando clubes (como o Humaitá e o Damasco), fosse trabalhando como jornalista - foi o primeiro comentarista esportivo da PRE-9 (a Ceará Rádio Clube, pioneira da radiofusão no estado). Exerceu vários cargos na Federação e no Ferrim (inclusive de técnico campeão em 1945), sendo, como chegou a afirmar em depoimento, "pai, mãe, e educador" do Time, somente não ocupando o cargo de presidente por desejo pessoal.
Valdemar Caracas em suas próprias palavras, decidiu-se a transformar aquele “timezinho de operários" em "gente", ou seja, se dispôs a organizar melhor a equipe nas horas vagas que tivesse.
Reuniu os "atletas-trabalhadores" e, juntos, "refundaram" ou fundaram formalmente o Clube (em tal reunião, houve até ata lavrada em livro!), o qual recebeu o "nome completo" de FERROVIÁRIO FOOT-BALL CLUB, denominação alterada anos depois, por sugestão de Caracas, para FERROVIÁRIO ATLÉTICO CLUBE. Apesar de mantidas as cores, o time passou a usar camisa com várias listras horizontais (seu símbolo era asa branca dentro de uma roda de ferro) e depois, nos anos 1940, o uniforme principal que hoje ainda tem, outra idéia do chefe da RVC, inspirado no terno do São Paulo, equipe pela qual torcia - em depoimento ao autor, Valdemar Caracas disse que chegou a trazer do sudeste jogos de uniformes do clube paulista para uso do Ferroviário. O uniforme reserva apresentava camisas com listras verticais.
Mostrando mais uma vez sua influência, Caracas igualmente indicou o primeiro presidente, José Maciel, auxiliar de engenheiro da RVC indicaria muitos outros dirigentes corais, confessou em seu depoimento. Nascia assim, naquele 9 de maio de 1933, entre humildes empregados da RVC, o Ferroviário, para ser um dos orgulhos do futebol e povo cearense.
No ano seguinte o time já estava participando dos torneios da Liga Suburbana – seria inclusive campeão desta em 1937-, e com os êxitos obtidos, recebeu em 1938 convite da Associação Desportiva Cearense (ADC) para ingressar na primeira divisão do campeonato local. Valdemar Caracas contou que em várias oportunidades teve de "disciplinar" os jogadores, pois a equipe suburbana era useira e vezeira em "tomar o apito do árbitro” quando a decisão deste não lhe agradava.
A existência de "clubes-operários" como o Ferroviário não era tão excepcional assim no país, porém fruto da já mencionada popularização do foot-ball e expansão do capitalismo. Há igualmente os conhecidos casos do Bangu no Rio de Janeiro (1904), Juventus em São Paulo (1924) e, aqui mesmo no Ceará, do Tramways (fundado também em 1933, ligado a The Ceará Tramways Light, empresa inglesa fomecedora de luz, força, bondes e ônibus da capital), Nacional (de 1942, time dos funcionários dos Correios) e Usina Ceará (de 1949, vinculado à Fábrica Siqueira Gurgel).
Atestam os historiadores do futebol brasileiro que em decorrência dos resultado obtidos, geralmente os “jogadores-operários” conseguiam nas empresas certas regalias e facilidades, como horários flexíveis, serviços mais leves etc, na intenção de se dedicarem às atividades esportivas. Eram nitidamente protegidos pela diretoria, podendo de maneira mais fácil obterem promoções, melhores salários ou, no mínimo, a garantia da permanência no emprego. Formava-se, assim, uma verdadeira "elite operária". Apesar de Caracas em seu depoimento negar que houvesse alguma regalia aos "jogadores-operários" do Ferroviário, acabou relatando que os atletas eram comumente liberados da labuta para treinar (nos anos 40, o time treinava apenas duas vezes por semana, um treino físico, geralmente na praia, e outro técnico, chamado de "conjunto") e que prezavam da amizade pessoal do poderoso chefe do escritório de manutenção da RVC - como chegou a dizer o escritor Eduardo Campos, na Rede de Viação, até o trem apitava como Valdemar Caracas queria! Outro entrevistado, porém, o ex-dirigente coral Hamilton Pereira, confirmou a existência de regalias dos jogadores na década de 1950.
Luta de classe à parte o gostoso futebol cearense não seria mais o mesmo após 1933.


Time do Ferroviário que disputou seu primeiro Campeonato Cearense em 1938
Em pé: José Severiano Almeida (diretor), Oscar Carioca, Procópio, Adelzirio, Dudu, Bitonho, Zeca Pinto (atacantes), Valdemar Caracas (treinador) e Alberto Gaspar de Oliveira (diretor); Agachados: Baiano, Zimba, Boinha (médios), Zé Felix e Popó (zagueiros); Sentados: Gumercindo e Puxa-faca (goleiros).
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De acordo com Ernani Buchman, ex-presidente do Paraná Clube e autor do livro “Quando o Futebol Andava de Trem”, o Ferroviário não só é um dos maiores vencedores entre mais de uma centena de times de origem ferroviária no país, como é o que demonstra hoje a maior vitalidade, seguindo forte diante de tantas dificuldades que assolam o futebol brasileiro.

VALDEMAR CARACAS



Valdemar Cabral Caracas, nascido na cidade de Pacoti (CE) em 9 de novembro de 1907, é o fundador do Ferroviário Atlético Clube. Foi também o primeiro comentarista de futebol do estado, trabalhando na Ceará Rádio Clube, pioneira da radiofusão cearense. Caracas se envolveu ainda com a política, sendo eleito vereador de Fortaleza em 1937, pelo extinto Partido Socialista. Posteriormente, em 1947, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro (PSB) no estado do Ceará.
Em 2007, comemorou-se o Centenário de Caracas.

A seguir uma crônica do próprio Valdemar Caracas, escrita em maio de 1994, onde ele conta detalhes sobre a fundação do clube coral.

FUNDAÇÃO DO FERROVIÁRIO ATLÉTICO CLUBE

Por Valdemar Cabral Caracas

Vou falar sobre o Ferroviário, precisamente do Ferroviário Atlético Clube. Nascido em 1933, fruto da junção das equipes "Matapasto" e "Jurubeba", recebeu, na pia batismal, o nome de Ferroviário Footbal Clube, mas, na confirmação da crisma, substitui o Football por Atlético.
Antes que me perguntem, vou dar, para vocês, esta explicação primordial. Iniciava-se o ano de 1933, quando a direção da Rede de Viação Cearense (RVC) autorizou a execução de serviços extraordinários nas oficinas do Urubu, para a reparação de locomotivas, carros e vagões, durante um expediente noturno, que começava às 18 e terminava às 20 horas. Como o expediente normal expirava às 16:25, os operários mais jovens que residiam longe dali (Barro Vermelho, Soure, Otávio Bonfim, Quilômetro 8, Parangaba, Mondubim) resolveram aproveitar a hora de folga para a prática de futebol; na preparação do campo, a relva retirada do espaço a ele destinado, era constituída de mata-pasta e jurubeba.
A verve operária, que era fértil, escolheu, então, estas plantas medicinais para denominação das duas onzenas que se defrontavam todas as tardes, no campo improvisado. As traves das metas eram roliças, confeccionadas que foram com tubos inservíveis, retirados de caldeiras das "Marias-fumaça".
Com aquele "timezinho" cognominado apenas de Ferroviário, eles, os operários-atletas, ou melhor, pebolistas, foram aos subúrbios onde realizaram partidas amistosas, com real proveito para a harmonia do conjunto, tudo sem qualquer interferência da minha parte.
Foi, então, que deliberei fazer dele gente, como se diz na gíria. Reuní operários, meus companheiros, promovi sessão com livro para a lavratura de atas, fiz um retrospecto da agremiação que surgia, completei o nome desta e disse-lhes da importância daquela reunião, como fator auspicioso para projeção da classe ferroviária.
Era pretensão minha que tal ocorresse a 9 de novembro, quando eu completaria 26 anos, mas o entusiasmo exigiu a antecipação e não perdi tempo, marcando o dia para 9 de maio, exatamente 6 meses antes de 9 de novembro. Parti, então para a nova missão, aproveitando as horas disponíveis da minha atividade funcional.
Fui tudo no Ferroviário, menos presidente, porque nunca quis sê-lo. Fui pai, mãe, babá e, sobretudo, seu educador, disciplinando-o, pois a equipe suburbana era useira e vezeira em tomar o apito do árbitro, quando a decisão deste não lhe fosse agradável. Acabei com essa prática danosa ao seu comportamento, o time se fez clube, cresceu e está aí, vencendo os tropeços e dando alegrias a todos nós, seus torcedores.


Foto de Valdemar Caracas em 1926, em Missão Velha, interior do Ceará.

Fontes: Sítio Oficial do Ferroviário e Livro Ferroviário – Nos Trilhos da Vitória, Airton de Farias, Edições Livro Técnico.