domingo, 24 de agosto de 2008

Memória do Futebol Cearense - Os reis do clássico

Quem é melhor, o alvinegro Gildo ou o tricolor Mozarzinho? Entenda o papel destes dois ídolos de Ceará e Fortaleza na consolidação do Clássico-Rei como o principal encontro do futebol cearense

"Em um belo dia a deusa dos ventos beija o pé do homem, o maltratado, desprezado pé, e desse beijo nasce o ídolo do futebol"
(Eduardo Galeano, escritor uruguaio)

A aura que leva um simples encontro entre duas equipes a ganhar o status de "clássico" vai além do mero resultados nas quatro linhas, da rivalidade entre as torcidas ou mesmo do histórico de embates dos adversários. Passa, sobretudo, pelo papel do ídolo. E na construção do nosso Clássico-Rei, o encontro entre Ceará e Fortaleza, hoje consolidado como um dos principais jogos do País, ninguém teve participação tão definitiva quanto Gildo e Mozarzinho, atacantes do Vovô e do Leão, respectivamente, na década de 60.
A disputa sobre qual dos dois era o melhor jogador cearense mobilizou as atenções nos embates entre os rivais na década de 60, período considerado "romântico" do futebol brasileiro, então bicampeão mundial. Os acalorados debates entre torcedores começavam ainda na semana do partida e só cessavam após o jogo, para recomeçar nas vésperas do próximo clássico.
"Quando o Mozart (Mozarzinho) pegava na bola a torcida (do Fortaleza) se levantava. E quando eu pegava na bola era a mesma coisa. E quando um marcava um gol! Ave, Maria... O mundo vinha abaixo", conta Gildo, entre risos. Foi assim entre os anos de 1962 e 1969, período em que Mozarzinho e Gildo se enfrentaram nos jogos disputados no estádio Presidente Vargas superlotado - ainda não existia Castelão. A disputa à parte foi fundamental para consolidar o Clássico-Rei como o principal do Estado. "Já cheguei a jogar clássico com 30 mil pessoas no PV. Nunca joguei com estádio mais ou menos. Era sempre casa-cheia", revela Mozarzinho.
E para o ídolo, o dia de clássico também é uma experiência diferente. "Para mim era uma glória jogar contra o Fortaleza. Esse é o jogo para o jogador", avalia Gildo, que defendeu o Ceará entre 1960 e 65 e de 1968 a 71, levando quatro estaduais e duas artilharias. "A gente dava muita entrevista para o rádio e os jornais. Foi uma época em que o futebol cearense se desenvolveu muito", aponta Mozart, meia-atacante do Leão em 1962, 63, 65 e 69, bicampeão estadual e artilheiro em 1964, pelo América.
Amigos desde os tempos de atletas, os dois preferem a diplomacia na hora de responder a pergunta que até hoje mobiliza debates entres tricolores e alvinegros. Afinal, quem foi melhor, Mozart ou Gildo? "Deixa que o pessoal (torcedores) dizer", desvia o ainda hoje astuto Mozarzinho.


PERFIL DO GILDO
Nome: Gildo Fernandes de Oliveira
Nascimento: 12.1.1940
Naturalidade: Recife (PE)
Posição: centroavante
Times: Santa Cruz, Vasco, Ceará, América-SP e Calouros do Ar
Títulos: Campeonato Cearense (1961, 62, 63 e 71, pelo Ceará); Norte-Nordeste de Seleções (1962, pela seleção cearense); Norte-Nordeste de Clubes (1969, pelo Ceará)
Artilharias: Campeonato Cearense (1961 - 15 gols; e 1963 - 16 gols).


PERFIL DO MOZART
Nome: Mozart Araújo Gomes (Mozarzinho)
Nascimento: 5.1.1939
Naturalidade: Fortaleza-CE
Posição: meia-atacante
Times: Fortaleza, Remo, Náutico, Fluminense, Comercial-SP, XV de Jaú-SP, América-CE, Ceará e Ferroviário
Títulos: Campeonato Cearense (1965 e 1969, pelo Fortaleza); Norte-Nordeste de Seleções (1962, pela seleção cearense)
Artilharia: Campeonato Cearense (1964 - 20 gols)

Vantagem de Gildo
Durante os períodos em que defenderam Fortaleza e Ceará, respectivamente, Mozarzinho e Gildo participaram de 13 Clássicos-Rei por competições oficiais. Estatisticamente, a vantagem no embate particular favoreceu o alvinegro Gildo. O Vovô venceu seis das partidas, com cinco empates e duas vitórias dos leoninos. No quesito gols, Gildo anotou sete vezes contra o rival, Mozarzinho marcou um.
A explicação para a diferença no número de gols está nas características de cada um dos atletas. "Eu achava o Gildo mais fazedor de gols, mas era eu quem trabalhava a bola para ele, para o Croinha (ex-atacante tricolor, já falecido)", diz Mozarzinho. Gildo recorda que os confrontos diante do rápido Mozart era sempre complicados. "Eu dizia toda hora para a minha defesa, cuidado com o homem que ele é perigoso", afirma o artilheiro.
Para ele, o Clássico-Rei que mais marcou sua carreira foi o que deu o título estadual de 71 ao Ceará, empate por 2 a 2. Já Mozarzinho escolhe a decisão de 1969 como seu jogo inesquecível. "Foi meu último clássico contra o Ceará. Ganhamos por 1 a 0, gol do Joãozinho, e fomos campões. Depois eu deixei o futebol".

Emais
- Em 1962, o confronto entre Ceará e Fortaleza ganhou manhete de O POVO com o nome de "Choque-Rei". Como o embate também era chamado simplesmente de "Clássico", com o tempo houve a junção para o conhecido Clássico-Rei.
- Em 9 de junho de 1962, o Ceará levou o título do primeiro turno do Estadual ao bater o Tricolor por 3 a 2. Detalhe: no mesmo dia, o Brasil vencia a Inglaterra por 3 a 1, pela Copa do Mundo do Chile. Hoje em dia, nenhum time se aventura a disputar jogos oficiais durante o Mundial.
- O jornalista Alan Neto não fica no muro e aponta quem, na opinião dele, foi melhor na disputa entre Mozarzinho e Gildo. "O Mozarzinho foi o maior craque que eu vi na minha vida. O Gildo era craque é goleador, que é diferente. Craque mesmo foi o Mozart", avalia Alan Neto.
- Mozarzinho atuou por três meses pelo Ceará, em 1966. Na época, Gildo defendia o América-SP. Mozart deixou logo o Alvinegro e voltou para o América, seu clube em 1964. Ele prefere não falar detalhes da passagem por Porangabuçu. "Rapaz, não gostaria de falar não", disse o craque.
- Os dois ex-jogadores condenam a violência que cerca hoje o Clássico-Rei, sobretudo a ação das torcidas organizadas. "Tinha sempre a rivalidade, mas não era como hoje. O mais importante era que as torcidas se uniam, acompanhavam o jogo juntas", diz Gildo. "Quem ganhava ficava gozando a torcida adversária e só", resume Mozart.
- Durante a entrevista, Gildo se emocionou ao relembrar os tempos de jogador. "O torcedor é fanático. Quando eu estava em campo e a torcida me aplaudia era muito bom. Isso me dá uma saudade tremenda".

Fonte: Jornal O Povo

sábado, 9 de agosto de 2008

Memória do Futebol Cearense - Um goleador chamado França

Conheça um pouco da história de Raimundo Araújo França, o primeiro grande atacante do futebol cearense. Detentor de recordes que duram até hoje, ele encantou as torcidas de Fortaleza e Ceará entre as décadas de 30 e 50


França com a camisa tricolor em 1940, ano em que alcançou a artilharia do Estadual pela primeira vez (Foto: Álbum de família/Reprodução Evilázio Bezerra)

Muito antes de Rinaldo, Clodoaldo, ou mesmo Gildo e Croinha, um homem foi o responsável por despertar nos corações dos cearenses o gosto pelo gol. Relegado hoje aos arquivos de pesquisadores e à memória de torcedores saudosistas, o nome de Raimundo Araújo França, o França, centroavante que atuou entre os anos 30 e 50, encabeça a lista dos grandes goleadores do futebol local. Alto, porém versátil; atlético, mas boêmio; levou a carreira em meio a dualidades, tanto que foi ídolo, artilheiro e campeão por Ceará e Fortaleza.
Só em um ponto o hoje enigmático França manteve trajetória retilínea nos mais de 20 anos nos gramados: o faro de gol. O atacante foi goleador por onde passou. Até hoje, 50 anos depois de ter abandonado os gramados, e quatro após sua morte, ostenta a marca de jogador mais vezes artilheiro em Estaduais. Foram cinco ocasiões, três pelo Leão (40, 46 e 47) e duas pelo Vovô (41 e 42).
Existem grandes chances de França ser o atleta que mais anotou gols em Estaduais. Os registros são incompletos e nem a Federação Cearense de Futebol (FCF) possui as fichas de todas as partidas. Contudo, apenas nos anos em que foi artilheiro, França marcou 67 vezes. A média nestas cinco edições é de impressionante 1,5 gol por partida - 67 em 43 jogos, conforme levantamento do pesquisador Nirez de Azevedo, no livro "História do Campeonato Cearense de Futebol", e constatação nas fichas dos jogos no arquivo de O POVO.
Segundo o jornalista Blanchard Girão, recentemente falecido, França iniciou no futebol aos 18 anos, em 1936, atuando pelo Tramways. Quatro anos depois, ingressou no Fortaleza, seu clube de coração e pelo qual alcançou a artilharia do Estadual daquele ano. Na temporada seguinte, transferiu-se com meio time para o Ceará. O pesquisador Airton Monte conta que a mudança veio devido a problemas do técnico do Leão, Valdemar Gavião, com a diretoria. No Vovô, França alcançou o bicampeonato em 41 e 42, com direito a mais duas artilharias.

No Rio de Janeiro

As boas atuações levaram o artilheiro para o Fluminense. Porém, na então Capital Federal, França não conseguiu repetir o bom retrospecto. Airton Monte acredita que a vida extra-campo pode ter prejudicado o atacante. "O França tinha tudo para ser um jogador reconhecido. Só que ele era muito farrista", avalia. Em seguida França atuou pelo Rio Negro (AM), onde começou os estudos em odontologia. A conclusão do curso veio no retorno ao futebol local, em 1946. De volta ao Tricolor, manteve a fama de goleador. Foi o artilheiro do ano e na temporada seguinte, sagrando-se bicampeão.
Pelo clube do Pici ainda conquistou os títulos de 49 e 54. França permaneceu no Leão até 57, atuando como jogador e treinador. Após abandonar a carreira prosseguiu no futebol como técnico mas não deixou de exercer a odontologia. O goleador faleceu em 2003, aos 85 anos. Ele foi casado com a também dentista Ivone e, após a morte da esposa, viveu até sua morte com a dona de casa Tereza. França tinha um filho de criação de nome Adriano e morava na Gentilândia. (colaborou o ex-jogador Luís de Arruda Veras)

E-MAIS

Conheça detalhes da carreira de França no livro "História do Campeonato Cearense", de Nirez de Azevedo. Fortaleza: Equatorial Produções, 2002.

NÚMEROS

5
vezes França foi artilheiro do Campeonato Cearense. Três pelo Fortaleza (1940, 46 e 47) e duas pelo Ceará (41 e 42).

1,5
gol por partida é o aproveitamento de França nos anos em que foi goleador do Estadual. São 67 gols em 43 jogos.


PERFIL

Nome: Raimundo Araújo França

Posição: centroavante

Nascimento: 16.1.1918, em Maracanaú

Falecimento: 5.1.2003, em Fortaleza

Times que defendeu: Tramways, Ginásio São João, Fortaleza, Ceará, Fluminense e Rio Negro (AM) e Seleção Cearense

Títulos: Seis vezes campeão cearense (41 e 42, pelo Ceará, e 46, 47, 49 e 54, pelo Fortaleza).

Artilharias: cinco vezes artilheiro cearense (40, 46 e 47, por Fortaleza, e 41 e 42, pelo Ceará).

"O Estilista"

Durante o auge da carreira, França ficou conhecido pelo apelido de "Estilista", devido a sua elegância em campo. "Era pela maneira de ele passar, de driblar. Apesar de grandalhão, o França era muito elegante", diz o pesquisador Airton Monte. Como volante do Gentilândia, Airton teve a missão de tentar marcar França na década de 50. "Disputar corpo a corpo com ele não tinha futuro. Eu tentava marcar a bola. Ele era pesadão, mas era um atleta", observa.
O jornalista Sílvio Carlos recorda que as iniciais do nome do jogador (RAF) eram constantemente utilizadas pelos jornais da época em alusão às ações da Força Aérea Britânica (Royal Air Force-RAF). "Os jornais brincavam muito com isso por causa da Segunda Guerra (Mundial). Sempre que ele marcava em algum jogo colocavam na manchete 'RAF bombardeia adversários'", comenta Sílvio Carlos, que foi presidente do Riachuelo quando França treinou a equipe, na década de 60.

E-mais

- França alcançou o feito de ser campeão mesmo depois de abandonar o futebol. Em 1954, já havia pendurado as chuteiras mas, como o Tricolor passava por problemas de ataque, voltou para reforçar o time. Marcou gols e ajudou o Leão a levantar o bicampeonato.

- Para o jornalista Alan Neto, colunista do O POVO, a saída de meio time do Fortaleza para o Ceará, em 1941, evidência a então pequena rivalidade entre os clubes. "O grande rival do Ceará era o Maguary, não o Fortaleza. Depois, a torcida do Maguary migrou para o Fortaleza", aponta.

- Mozarzinho acredita que França teria condições de atuar no futebol atual. "O futebol naquela época era muito técnico. Hoje em dia estão chutando bola com jogador e tudo. Ele jogaria futebol porque sabia, então jogaria em qualquer época. Só não teria tanto espaço".

Família de goleadores


Uma das formações do Tricolor bicampeão em 1954 - França no ataque (Foto: A história do Campeonato Cearense de Futebol (Nirez de Azevedo)/Reprodução Patrícia Araújo)

A família de França contabiliza incríveis nove artilharias de Campeonatos Cearenses. Além das cinco edições em que o jogador liderou a tábua de goleadores, mais dois integrantes do "clã" também inscreveram seus nomes entre os maiores atacantes do nosso futebol: seus sobrinhos Moésio, falecido em 1993; e Mozart Gomes, o Mozarzinho.
Moésio foi artilheiro três anos seguidos pelo Fortaleza, entre 1952 e 1954. Neste ano, chegou a formar linha de ataque com o tio. Mozarzinho alcançou a artilharia em 1964, pelo América. "Acho que é um dom da família. Não teve outra família que se destacou tanto no futebol", observa Mozarzinho, hoje com 68 anos.
Ele conta que o estilo de jogo dos sobrinhos era bem diferente do praticado por França. "O tio França era muito clássico, muito técnico. Nós (Mozarzinho e Moésio) jogávamos mais na base da raça, éramos mais ágeis", avalia. Mozarzinho diz que França sempre deu conselhos aos sobrinhos. "Ele foi um grande incentivador. Ele e o nosso pai (coronel Mozart Gomes), que era um torcedor fanático do Fortaleza".

Fonte: Jornal O Povo